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Emergência!

Controladores: “November 49473: Você gostaria de declarar emergência?”

 

Silêncio.

A palavra silêncio precisa de um parágrafo para ela apenas. E apenas ela. O ideal seria ter um parágrafo inteiro, grande, de várias linhas… em branco, como esse:

 

 

 

 

As vezes é preciso extrapolar nas palavras e em suas formas um significado que elas por si só não dão conta. E se a urgência de se usar as palavras certas fosse tão grande que é preciso deixar um parágrafo inteiro assim? Vazio? Será que você me entenderia? Certamente não, para isso existem os poetas para preencherem os espaços em brancos com arranjos de letras que podem não necessariamente te fazer entender um significado concreto mas certamente trazer sensações que vão além do que nossa razão cognitiva é capaz de entender.

Não sou poeta, nunca escrevi poemas, mas para momentos como esse talvez fosse útil ser um. Mas não desisto, de palavra em palavra vou tentar (atenção, apenas tentar) te colocar no cockpit daquele avião durante esse voo que testamos os limites daquela máquina, do nosso psicológico, de nossa inata luta pela sobrevivência e claro do nosso treinamento como pilotos.

Cessna 172 voo à cima das nuves

Voando à cima das nuvens no Arizona em um Cessna 172

Estamos na nossa quinta perna de voo, decolando de Phoenix no Arizona rumo à Carlsbad, no Novo México. Por estarmos em uma região montanhosa, parte da cordilheira das montanhas rochosas que vão desde o Alasca e continuam até a América do Sul – onde trocam de nome para Andes- estamos com atenção redobrada nas condições meteorológicas. Desde quando saímos de Seattle estamos observando uma frente fria de alta pressão lutando com uma frente quente de baixa pressão. O resultado desse confronto é uma frente estacionária deixando condições meteorológicas horríveis em seu caminho.

Estamos cientes de que a qualquer hora podemos ficar presos em solo esperando que ela passe e quando decolamos de Phoenix percebemos que ela está ainda bem à leste de nossa rota, apesar das gotas de chuva em uma cidade que tem sol 300 dias por ano.

Um dos maiores perigos de se voar em uma região montanhosa em um avião pequeno como esse são as temperaturas abaixo de zero que junto com humidade fazem formar gelo nas asas do avião e com isso diminuir consideravelmente a performance, perder a sustentação e se nada for feito o resultado pode ser fatal.

Decolamos com plano de voo por instrumento preparados para voarmos sem visibilidade externa apesar de não haver nenhum alerta de possibilidades de gelo e obstrução (nuvens) nas montanhas. Passamos algumas camadas de nuvens ao sul de Phoenix e nivelamos à sete mil pés. À frente e acima só vemos o azul do céu enquanto embaixo as nuvens de nossa perspetiva parecem passar correndo como em uma esteira de algodão.

A paisagem ali é tão bonita e a sensação tão única que nos sentimos… “Nas nuvens”!

Mas não por muito tempo.

Flying over the clouds between Arizona and New Mexico in a cessna 172

Voando à cima das nuvens em um cessna 172

Um tempo depois recebemos instruções para subir a 11 mil pés. Com o ar rarefeito, os tanques cheios e o peso do avião no limite do manual do avião, subimos com um desempenho mísero. Avisamos o controlador pelo rádio que estamos subindo a menos de 200 pés por minuto, quando o esperado é um mínimo de 500 pés por minuto. Quando finalmente nivelamos à 11 mil pés, verifico a temperatura exterior: 5 graus celsius negativos.

A temperatura baixa sem humidade não chega ser um perigo, mas as nuvens à nossa frente no nosso nível de voo nos dão o alerta. Pego o check-list de procedimentos de emergência e leio em voz alta o que devemos fazer em caso de gelo.

Um dos ítens mais importantes e óbvios diz friamente: Mude a altitude.

Mas estamos beirando o limite. A regra desse espaço aéreo não permite voo abaixo de 11 mil pés por causa das montanhas e também pela dificuldade de comunicação por rádio. Acima disso é realmente pedir demais para o motor desse aviãozinho, além de beirarmos o limite em que podemos voar com segurança sem necessidade de oxigênio suplementar que obviamente não dispomos à bordo.

As nuvens chegam e rapidamente observamos o gelo acumular nas asas e na estrutura que as suportam. Verifico que o Don, nosso único passageiro no assento de trás tem os cintos de segurança atados e apertados. Seguimos os procedimentos de emergência em caso de gelo. Repasso o check-list com o Santiago:

1. Aquecedor do tubo de pitot: Ligado

2. Aquecedor de cabine: Máximo

3. Manete de potência: Máxima

4. Flapes: Retraídos

5. Velocidade de aproximação de pouso de emergência em caso de gelo: 65 à 75 nós

Pedimos ao controlador desvio de 20 graus à esquerda. Negativo. Pedimos mudança de altitude. Negativo.

Informamos o controlador de voo da presença de gelo. Os próximos minutos são tensos e preocupantes mas não dispomos do luxo de nos preocuparmos. Nessas horas agimos como fomos treinados. Nossos cérebros devem trabalhar como máquinas, fria e logicamente. Sem nenhuma visibilidade exterior, confiamos inteiramente nos instrumentos.

Nessas situações nosso corpo e nossas sensações querem nos enganar dizendo que estamos subindo à direita quando na verdade podemos estar perdendo altitude em curva à esquerda por exemplo. Mas os picos das montanhas estão muito perto para deixarmos que isso aconteça. Nossos olhos começam a se movimentar rapidamente entre os seis instrumentos redondos do painel, eles parecem se tornar uma extensão do nosso corpo. Para cada ponteiro movendo uma correção no manche é necessária e assim mantemos o avião sob controle.

Passamos a primeira camada de nuvens e somos autorizados a subir  para os 13 mil pés, para tentarmos passar por cima da próxima camada à nossa frente. A performance do avião é miserável e subimos lentamente enquanto observo a acumulação de gelo nas asas. Estamos aproximadamente à 12 mil pés quando entramos na segunda camada de nuvens. O motor perde potência. Gelo no carburador. Aplicamos o aquecedor do carburador. Informamos no rádio: “November 4914G incapaz de subir acima de 12 mil pés”. À essa altitude estamos voando em direção à leste  em nível de voo em que os aviões voam na direção oposta. É como se estivéssemos voando na contra-mão da aerovia. Mas como estamos em contato por radar pelos controladores e em condições críticas, somos autorizados a permanecer naquele nível de voo.

Pedimos desvio para o aeroporto mais próximo, precisamos fazer um pouso de emergência. Somos autorizados a pousar em um aeroporto à 80 milhas ao sul dali. Começamos uma curva de 90 graus para direita quando ouvimos o som calmo da voz do controlador contrastando com o zunido do motor do avião bem na nossa frente entoando em nosso ouvido:

“Você está declarando uma emergência?”.

Essa frase vai ficar por muito tempo na minha memória. Apesar do nosso estado crítico acredito que a frieza com que conduzíamos toda aquela operação não nos fez perceber o perigo real em que encontrávamos, mas ainda sim, eu diria: Sim estamos declarando uma emergência, se naquela mesma hora não tivéssemos saído daquela nuvem e visto o chão firme à uma distância segura de onde estávamos. Santiago responde: “Não é necessário, já estamos fora da nuvem.” Pedimos para retornar à nossa rota original e descemos para os 11 mil pés.

Depois da tempestade, você já sabe né? A bonança em forma de sol brilhando na nossa direção e lentamente descongelando o gelo do avião. Abro a janela, alcanço a frente da asa com a mão e retiro alguns pedaços de gelo. A temperatura é congelante mas parece que não sinto nada,  me sinto anestesiado. Devo estar na temperatura do gelo penso depois. Dou alguns pedaços para o Don e digo: Guarde com cuidado é o souvenir para você não esquecer desse voo.

Pousamos com segurança apesar das rajadas de vento em uma cidade no meio do deserto do estado do Novo México. O aeroporto também está deserto. Não vemos nenhum avião, nenhuma alma viva. Enquanto pousamos um animal parece atravessar a pista correndo, mas logo percebemos que é um tufo de capim seco que passa rolando. É uma cena de deserto.

Com a segunda perna do voo do dia cancelada devido ao mal tempo, vamos para o hotel mais próximo, deixo minha coisas, pego meu fone de ouvido e vou caminhando contra o vento forte naquelas ruas desertas e planas. Mais uma vez, sem nenhuma paisagem especial sinto um arrepio enquanto penso: Tão bom estar vivo.

Rime Ice building up in the leading edge of a cessna 172 Wings

Resto de gelo descongelando no bordo de ataque da asa, depois da fase crítica.

Flying in Cessna 172 in the Arizona desert, view from the cockpit window

Deserto entre o Arizona e o Novo México, depois de voarmos pelas nuvens.

Cessna 172 resting by itself in Deming airport, New Mexico, on its way to Chile

O cessninha sozinho no aeroporto desértico de Deming, no Novo México

E você, já teve a vida em risco alguma vez? Consegue pensar em outras situações onde é fundamental manter o controle emocional para seguir vivo?

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2 Comentários à Emergência!

  1. Felipe 07/05/2015 at 20:05 #

    É sempre muito enriquecedor para um piloto ler relatos como esse, com certeza uma boa fonte de aprendizado. Na hora vc tinha a possibilidade de dar um 180 e voltar pra direção de onde vinham? (ou se sim, seria o que vc faria na próxima vez em que estivesse em situação semelhante?).

    • Gusti 08/05/2015 at 06:56 #

      Felipe, quando a gente estuda para ser piloto parece tão fácil evitar uma situação como essa com o simples conselho de dar 180 graus e voltar para onde viemos. Claro que consideramos isso, mas no nosso briefing todos os aeroportos na direção do destino tinham céu caro e visibilidade superior à 10 milhas, apesar de que no mesmo briefing não mostrasse nenhuma obstrução nas montanhas, sabíamos que o tempo era bem melhor pra frente do que para trás. Esperávamos que à qualquer momento pudéssemos sair das nuvens como felizmente aconteceu, mas a atitude mais certa foi pedir desvio para pousar no aeroporto mais próximo (depois de passar pelas montanhas mais altas) e declarar “Mayday, mayday, mayday” o que no último segundo mostrou não ser necessário. Abração e kavok sempre 😛

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