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O dia que levei um fora de uma menina na Sérvia

As vezes fico na dúvida se minha memória é tão fraca quanto parece ou se a forma como aprendemos na escola é de fato deficiente. Eu sempre fui um bom aluno de história e geografia mas quase 10 anos (!) depois de concluir o ensino médio eu fico indagando para onde foram todas aquelas horas de estudo e classes aprendendo sobre os países, conflitos e guerras. Não são nem as datas ou os nomes dos personagens mais importantes que tínhamos que decorar para as provas que me preocupa de não lembrar mais, mas a ideia geral, básica do assunto ou conflito que estudamos em sala de aula.

escombro

Um dos escombros de casas que vimos em Kotor na Bósnia e Herzogovina

Antes de visitar cada país ou cidade eu tento dar uma googlada básica para me contextualizar com a história daquele lugar. As vezes visito os lugares mais marcantes e tento fazer das minhas viagens uma verdadeira aula de geografia e história. Uma das poucas coisas que lembro de ter aprendido nas aulas de história por exemplo era uma frase do tipo: “Aprendemos história para evitar que ela se repita”. Inclusive acho que vi essa mesma frase no campo de concentração de Auschwitz e ela faz muito sentido. Mas nem tanto.

Visitando os países da antiga Iugoslávia minha curiosidade estava atiçada para entender os conflitos tão recentes daqueles países. Afinal de contas as feridas das guerras ainda estão ali, bem diante dos nossos olhos. Em várias cidades impressiona ver prédios grandes arruinados pelas bombas. Em cada quarteirão em Kotor por exemplo era possível ver uma casa ou prédio todo destruído. Em alguns lugares como Sarajevo e Mostar grande parte da população sofreu perdas irreparáveis pelos conflitos. E para cada país que você visita naquela região você vai ver apenas um lado da moeda. Em Sarajevo por exemplo visitei o pequeno museu de história e por mais que o museu dizia ser neutro, as fotografias e as informações que eles exibem lá dentro o fazem sentir pena dos Bósnios e quase ódio pelo o que os Servos fizeram.

Chegando na Sérvia a situação se inverte, os escombros de guerra também são claros na capital. Devido à localização privilegiada, Belgrado já chegou a ser completamente destruída por volta de 40 vezes ao longo da sua história. Nosso guia que nos levou caminhando pela cidade  por exemplo não tinha mais de 30 anos e ele já morou em 4 países diferentes, sem nunca ter saído da Sérvia, já que nesse intervalo de tempo a Sérvia mudou seu nome (e território) oficial por 4 vezes. Alguns anos atrás, no conflito com o Kosovo por exemplo, as forças da NATO bombardearam o país e os EUA e principalmente Bill Clinton passaram a ser odiados pelos servos. Em compensação, não é difícil achar em Kosovo avenidas que levam seu nome e até mesmo sua estátua.

Tentar entender os conflitos pode ser um pouco trabalhoso e para falar a verdade, eu deixei a antiga Iugoslávia com mais dúvidas do que respostas. Com minha curiosidade acabei levando um fora e aprendendo uma lição. No alberque onde me hospedei em Belgrado, estava conversando com uma menina e depois que descobri sua idade, perguntei se ela lembra de alguma coisa da guerra. Sua feição endureceu e ela me perguntou se eu era americano ou se tinha morado nos EUA. “Porque esse povo só quer saber de guerra. Eu não gosto de falar sobre isso”, disse séria. Nem adiantou me defender dizendo que era brasileiro, eu já tinha cruzado uma zona que era mais sensível do que eu imaginava.

Depois me senti um idiota, ela tinha toda a razão. Por que falar de guerra? Por que fazer papel de repórter amador? Só depois do fora eu pude me colocar em seu lugar e imaginar que todo turista devia perguntar a mesma coisa. É como eu  quando falo que sou do Brasil logo começam a falar sobre futebol, com a diferença que esse esporte nunca deixou cicatriz nem vítimas nos meus entes queridos. “Esqueça esses conflitos e conheça a Sérvia pelo o que ela é hoje e pelos servos que cruzam o meu caminho”, falei comigo mesmo.

cemitério

Centenas de túmulos em Mostar na Bósnia mostravam o mesmo ano de falecimento: 1993

Afinal, nem sempre a política de um país ou seu estereótipo reflete na sua população e o primeiro exemplo que tive disso foi quando viajei para os EUA mesmo e me surpreendi conhecendo muitos americanos simpáticos, humildes, atenciosos. Bem diferente da arrogância que eu via na política e na história americana. Isso se repete a cada país que visito e cada pessoa que conheço; estereótipos são desconstruídos, pré-conceitos são des-pré-zados. Por mais que eu me simpatize por um lado de um conflito isso não quer dizer que eu deva julgar o povo que vive do outro lado da moeda, afinal de contas somos todos seres humanos, muitas vezes a mercê dos políticos e fazedores de regras.

Deixar de lado tudo aquilo que você aprendeu nas aulas de história pode não ser uma má ideia para que você conheça a gente que vive ali como eles são e não como você ou a TV ou os livros o força a pré-julgar que são. Ainda bem que não lembro muito bem do que aprendi nas aulas de história!

E você de que forma viajar te ajuda ou ajudou a deixar os preconceitos de lado?

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3 Comentários à O dia que levei um fora de uma menina na Sérvia

  1. Lucas 08/10/2014 at 21:04 #

    Engraçado Gusti, não sei se atribuo esse rotulo da profissão as pessoas. A maioria das pessoas com quem eu converso, eu pergunto o que fazem por educação, e acabo esquecendo em seguida! Isso porque sei que muita gente está numa área por conveniência, por interesse, porque acha que é aquilo que gosta, mas acaba ficando indiferente. Outra coisa que muita gente usa como rótulo, e que eu nem sequer pergunto, é a idade. Você sabe muito bem, não é Gusti, que a idade não significa nada?

    Abraços!

  2. Lucas 07/10/2014 at 01:20 #

    Gusti, não acho que tem problema ser curioso (também sou!), e imagino que você deve ter se empolgado na hora conversando com a menina e lançou a a tal pergunta. Não acho que você deva se sentir culpado por querer saber de guerra. A guerra faz parte da historia humana. O mundo que vivemos, a nossa história, cada país, cada fronteira… é difícil encontrar algo hoje que não tenha sido moldado ou marcado pela guerra. Sendo um dos piores (senão o pior) males da humanidade, eu acho que a guerra deve ser enfrentada e compreendia, não ignorada, apesar da dor e das feridas que ela provoca. Não me entenda mal, eu me oponho categoricamente ao belicismo e desprezo guerra do fundo da minha alma. Você poderia ter encontrado alguma pessoa que se abriria e contaria a suas experiências, pois tenho certeza que tem muita gente que gostaria de se expressar, de desabafar, de compartilhar com os outros o que viveu, as lições que aprendeu, etc. Simplesmente não foi o caso com essa menina, que talvez ainda não se recuperou das sequelas da guerra, a pior delas sendo o ódio. É muito mais difícil superar uma perda se há ódio, raiva ou ressentimento envolvidos. Até se abrir para os outros é se torna mais difícil, e quando há uma abertura, o que sai é mais ódio. Esse sentimento venenoso é como uma infecção nas feridas, que as impedem de se cicatrizar, chegando mesmo a deteriora-la… Eu não estava lá na hora de conversar com a menina, mas pelo o que você conta, eu diria que há uma aversão ao povo americano, facilmente um preconceito. Nesse caso talvez não haja muito o que fazer, mas pra os casos, a sutileza na abordagem sempre ajuda, esperar mais pra frente na conversa ou talvez o proximo encontro tocar nesse assunto, pra pessoa ver que você é uma pessoa legal e de confiança. Sei que falar é fácil, pois também estou trabalhando nisso!

    Aquele abraço!

    • Gusti 07/10/2014 at 19:19 #

      Concordo com você Lucas! Não acho que as guerras devam ser ignoradas, mas acho que meu erro foi focar no plano político/das guerras antes de querer conhecer a pessoa pelo o que ela é, sem as cicatrizes e memórias ruins, se é que é possível. Ter essa sutileza na hora de conhecer alguém pode ser ainda mais complexo quando tentamos conhecer uma pessoa sem os rótulos e um dos mais difíceis é o rótulo da profissão. Tenho trabalhado em tentar conhecer as pessoas sem perguntar o que elas fazem (da vida). Me lembro que na Etiópia em um bar perguntei uma menina o que ela fazia e ela não quis me contar, achei estranho mas depois começamos ter conversas mais profundas e percebemos que tínhamos várias coisas e ideias parecidas. Eu estava ficando amigo dela e nunca soube o que ela fazia da vida e achei isso o máximo. Talvez o que a Serva queria era que a conhecessem sem os rótulos das guerra… Assim como quero que me conheçam sem os rótulos do samba e do futebol!

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