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Uma hora de cegueira poderia abrir seus olhos?

Eu estava prestes a atravessar uma rua, eu podia ouvir as buzinas, os carros acelerando, tocar (para não dizer trombar) nos carros estacionados ao longo da calçada. Porém, eu não podia ver absolutamente nada. Nesse lugar, tudo era breu. Um universo em que eu não fazia parte, ou pelo menos até aquele momento pensava não fazer. Esperei minha guia Anne pegar nas minhas mãos e com muito cuidado me conduzir seguro no meio daquilo que parecia uma selva urbana.

breu - Por uma hora isso foi tudo que meus olhos viram naquela exposição

Por uma hora isso foi tudo que meus olhos viram naquela exposição

Anne é uma jovem da minha idade que nunca viu nada, nem uma luz. Nasceu completamente cega. Ela tenta imaginar o conceito de cor pela sua temperatura, mas ainda assim deve ser algo um tanto abstrato para ela. Esperta e bem humorada Anne parecia se divertir com o fato de que naquele lugar os papéis se invertem. Ela, uma cega, sendo a guia de um ser que nasceu “perfeito”, (bem, nada que uma cirurgia a laser ou mesmo um óculos não desse um jeito nos meus 7 graus de miopia).

Ser capaz de se colocar no lugar do outro é uma das maiores lições que viajar tem me ensinado. Santo agostinho dizia que o mundo é como um livro e aqueles que não viajam lêem apenas uma página. Hoje em dia não é absolutamente necessário viajar para se colocar no lugar do outro. As artes como o cinema e principalmente a literatura têm esse papel: De te fazer enxergar além do mundinho em que vive. De ver que existem outras possibilidades, outras perspectivas, de fazer você entender o outro lado da moeda.

Viajar intensifica sim essas percepções e mais ainda quando você é levado à uma exibição que tem a capacidade de te colocar na pele de um cego. Foi em Praga, na República Tcheca que conheci Anne, minha guia naquele lugar cujo o nome esclarece tudo: Exibição Invisível. Após guardar seus pertences, incluindo relógio e celular em um guarda-volume, a recepcionista te apresenta ao seu(sua) guia que nos leva à um ambiente escuro e quando as portas se fecham atrás de você, tudo é um breu.

Por uma hora somos guiados, caminhando por 7 ambientes recriados e sem poder enxergar absolutamente nada, você só pode contar com o tato, com os cheiros, com os sons e claro, com sua guia.  O passeio começa na cozinha de um apartamento e com as mãos você vai sentindo tudo ali: O fogão, a geladeira, a pia, o microondas. As vezes Anne nos provocava nos pedindo para pegar um objeto no armário da cozinha como uma forma de bolo. A tarefa não era nada fácil. Da cozinha passamos pelos outros cômodos da casa, com toda sua mobília, sofás, mesinhas, cadeiras, televisão.

Ao abrirmos a porta que dava acesso à rua, a recriação sonora impressionava. Não lembro se o som estava mais alto que o normal, mas a impressão é essa mesma: de que todos os sons são amplificados. Os sons dos passarinhos, dos carros, as conversas, tudo parecia muito real. Com as mãos para frente tentando apalpar o invisível, os olhos piscando rápido e embora meu medo maior fosse de bater a canela em alguma esquina não pude deixar de sentir um pouco nervoso ao imaginar como seria viver aquilo todos os dias.

Após caminhar um pouco pela “rua”, nesse momento já não querendo que  Anne  soltasse as minhas mãos, passamos por outros ambientes como uma fazenda e um museu de esculturas em que tínhamos que adivinhar do que se tratava algumas formas. Com as mãos naquelas pedras lisas e frias não era tarefa fácil adivinhar o que aquelas curvas representavam até que você sentia alguma coisa que, oops, dava uma dica mais clara, como as partes íntimas do David de Michelangelo.

O último ambiente em que passamos era um bar. Você podia pedir alguma coisa para beber, pagando com as moedas que você tem no bolso. Embora eu não tivesse nada, tenho certeza que Anne me ajudaria dar a quantia certa ou verificar o troco. Ali conversamos distraídos sobre as nossas vidas e ouvindo um pouco de sua história eu pude enxergar bem aquela pessoa apesar de não poder vê-la e com isso eu pude responder para mim mesmo a pergunta principal da amostra: “Uma hora de cegueira poderia abrir seus olhos?”

O que: The Invisible Exhibition

Era para ser uma amostra temporária, mas tem feito tanto sucesso que continua em funcionamento indefinidamente.

Não fala checo nem inglês? Não se preocupe, além de guias em português você pode fazer a visita em espanhol, italiano, alemão, francês e russo. Mas nesse caso não esqueça de ligar ou mandar um e-mail para reservar o guia.

Após uma hora no breu tem uma exibição em que você pode testar objetos usados por cegos como uma máquina de escrever em braille, balança e relógio falantes, jogo de cartas, além de histórias de celebridades como Ray Charles e Andrea Bocelli. Às sextas-feiras eles oferecem um jantar completo no breu com direito a degustação de vinho, basta marcar com antecedência. E se quiser ir além ainda tem uma massagem invisível!

Para outras informações consulte o site: http://www.lathatatlan.hu/en/ 

Onde:

Novoměstská radnice – New Town Hall

Karlovo nám. 1/23 – Charles square 1/23

120 00 Praha 2 – Prague 2

Praga, República Tcheca

Quando:

De segunda a sexta-feira, 12-20 hrs (último grupo: 7pm)

Fins de semana e feriados, 10-20 hrs (último grupo: 7pm)

Quanto:

180 Kč (aprox R$20). Desconto para estudantes, família e grupos.

Contato:

E-mail: info@neviditelna.cz

Telefone: 777 787 064

ps. Não quer ir tão longe para refletir sobre universos distantes do seu? Zeca Camargo aconselha a peça “tribos” ou o recém-lançado filme nacional, “Hoje eu quero voltar sozinho”. Em seu blog ele resume: “O que esses dois trabalhos incrivelmente bons fazem com a gente não é nos deixar indignados, mas nos fazer sentir mais humanos.[…] Aceitar o diferente é sempre uma opção. O bom senso agradece toda vez que isso acontece – afinal, o “estranho” pode sempre ser você, ou alguém muito próximo. Mas é sempre muito menos sofrido, mais orgânico e mais natural quando a a gente chega a essa aceitação através de uma reflexão, de um diálogo, de uma troca. Que é exatamente o que Bruno Fagundes propõe com seu Billy, e Ghilherme Lobo com seu Léo. Sem defeitos.”

E você já teve alguma experiência parecida? Qual a melhor forma na sua opinião de se colocar no lugar de outras pessoas?

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11 Comentários à Uma hora de cegueira poderia abrir seus olhos?

  1. Juli 18/06/2014 at 12:23 #

    Gusti!
    Que lindo esse projeto!

    Realmente deve ser incrível vivenciar essa experiência!
    Abraço.

    • Gusti 18/06/2014 at 16:01 #

      Oi Juli! Que bom te ver aqui de volta! 🙂

      Abraços!

  2. Gregório Ribeiro 30/04/2014 at 10:44 #

    Gusti,

    Quando li, pensei na mesma coisa que o Lucas. Eu fui no Dans Le Noir aqui de Londres (perto da estação de Farringdon) e foi sensacional! Claro que é uma expêriencia similar mas diferente, mas mesmo assim mexe muito com seus sentidos. Eu fui no menu de frutos do mar e minha namorada foi no surpresa, tivemos que escolher antes de entrar na sala. Depois de passar por 3 cortinas negras seguindo o nosso garçom com a mão no ombro(tipo fila indiana), chegamos na mesa. O nosso garçom era cego de nascença.

    A experiência é louca porque a entrada, prato principal e sobremesa têm opções quentes e frias e BEM rápido você começa a comer com as mãos porque não consegue ver nada. São mesas grandes com várias pessoas então você acaba conversando muito também e tenta adivinhar como as outras pessoas são apenas com seus ouvidos.

    No final eles mostraram o menu com todas as fotos das coisas que comemos, o meu menu de frutos do mar foi normal e apareceram coisas como tubarão, robalo e caranguejo. Já a minha namorada(Rafaela), que comeu o menu surpresa, descobriu que se alimentou de uns bagulhos muito neuróticos como chouriço, carne de camelo e avestruz.

    🙂

    Dá próxima vez que eu for pra Praga vou lembrar desse lugar!!

    Abraços.

    • Gusti 03/05/2014 at 10:08 #

      Que bacana essa experi^encia Greg’orio! Valeu por compartilhar, vou colocar na minha lista!
      Um abra’co!

  3. SOLANGE 28/04/2014 at 23:03 #

    Eh, talvez, esta experiência abriria muito os olhos de muitas pessoas, não os físicos, mas os da alma!!!
    Bjso

  4. SOLANGE 28/04/2014 at 23:02 #

    Eh, acho que todos deveríamos passar por experiências como esta, ou mesmo outras que só de pensar nos dá um frio na espinha. Talvez, esta experiência ajudaria a abrir muitos olhos das pessoas, não os olhos físicos, mas os olhos da alma!!

    • Gusti 29/04/2014 at 08:08 #

      Concordo, mas como citei no fim do blog existem outros exemplo de artes e artistas que nos ajudam a refletir! Beijos!

  5. Lucas 28/04/2014 at 16:57 #

    Essa experiência deve ter sido incrível! Me faz lembrar daquele restaurante onde os garçons e garçonetes são cegos e você come no breu, sem saber o que é, chama “Dans le noir” se não me engano. Mas nada deve se comparar à profundidade dessa experiência ai do “invisible Exhibition”. Mas acho que não haja melhor forma pra se colocar no lugar dos outros do que ESTAR no lugar deles. A minha experiência foi ter me torrando um “imigrante”. Infelizmente, a gente acaba vivendo discriminação. Por causa disso, eu me senti na pele de minorias e gente que sofre preconceito não só no Brasil mas também de qualquer lugar, pois o princípio é o mesmo: ser julgado com base num conceito negativo errôneo antes mesmo de te conhecer, o que faz certas pessoas terem relações bem limitadas com você, as vezes até te evitar completamente. No início isso é muito chato, mas você acaba se acostumando a ser “minoria cultural e étnica”, o termo oficial usado aqui. Ainda assim, estou indo pra um lugar com muito mais diversidade cultural, onde me sinto melhor. Naturalmente, isso me abriu os olhos!

    Abraços!

    • Gusti 29/04/2014 at 12:16 #

      Pois Lucas, toda sexta-feira eles também oferecem essa experiência de jantar no breu! Valeu por compartilhar essa sua experiência, infelizmente ainda existe e muito preconceito por tudo e contra todas as minorias no mundo hoje em dia. Espero que você se sinta melhor onde quer que esteja indo, ainda é no Canadá?

      Um abraço!

      • Lucas 29/04/2014 at 23:55 #

        Desculpe por não ter mencionado, mas é no Canada sim! É pra Montreal, e vou essa semana mesmo! Em termos de diversidade cultural, ela é a melhor da província, com mais de 30% da população sendo minorias visíveis, sem contar os resto que é “branco” mas que são de origens diferentes. Ela só perde pra Toronto, que é composta 50% de minorias étnicas visíveis! Mas a gente vai pra um lugar de cada vez! Embora o bom mesmo seja ser cidadão desse planeta terra, que é 100% diversidade cultural… né?

        Abração!

        • Gusti 30/04/2014 at 10:16 #

          Exato Lucas,

          Eu me considero isso mesmo, cidadão da Terra. O difícil às vezes é se sentir assim quando tem gente que se acha dono do espaço, mas no final é o que ta na cabeça da gente e como interpretamos que vale!

          Um abraço!

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